sexta-feira, 2 de março de 2012

Emoção flutuante

Meus lençóis já não me suportam. Suas flores jazem desbotadas e murchas. Até a trama de algodão macio se rompe após tantos diuturnos sons das cigarras. Eu não sou. Conflitos insuportáveis me engasgam e me consomem. As pausas da minha respiração parecem intermináveis. Estou presa ao desmoronamento de mim. Sem conceitos. Sem convicções. Escorrem babas e lágrimas e as contrações incontroláveis do meu corpo, pesam e pesam, e pesam. Alguém me garantiu que o sol nasceria. Onde? Quando? Tenho que sair. Tenho que sair. Não quero fugir, entretanto. Adiar não devolve as cores do jardim de minha cama, nem tece os fios de minha segunda pele. Levo as mãos ao rosto, escondendo-o de mim. Tento ouvir o silêncio. Chego mesmo a ouvir as pulsações, o barulho da água a me percorrer as veias. Depois o nada. Suspiro e elevo as pupilas ansiosas em ver além. Tudo está calmo. Sem cheiro. Inconsciente. Perdi-me. O contato se desfez. Nada me atinge. Nem mesmo o sol raiou para mim. Não consigo mover-me; não consigo buscá-lo. Se ele alcançasse ao menos as flores dos meus lençóis... Inútil querer-me conduzir por minha ânima em mim. Simplesmente, entrego-me. Estou numa montanha-russa entre saudade, compaixão e as pausas de um mundo real. Enquanto engulo lágrimas e respiro descompassado, atendo ao telefone e, pela enésima vez, digo- gentilmente- não, senhora. Não quero assinar esta TV digital... Pouso o telefone. E o direito de chorar em paz volta a reinar. Tudo se torna um melodrama de uma vida, por hora, medíocre e desencantadora. A música da novela, que já nem sei qual é, dá o ritmo às minhas sensações, e uma melodia arranca de mim a mais pura e verdadeira dor. Dor às avessas, dor perdida no tempo, dor sem nome. Meu olhar alcança os espaços e cada quadro revela sua natureza morta. E as gravuras se repetem em série, sem conseguir de mim nenhum sorriso. Rir seria abandonar essa onda de altos e baixos e, quem sabe, flutuar redesenhando outras formas muito além desse meu cotidiano empastado e previsível. O barulho da porta batendo surpreende-me. O vento se aloja junto a mim, pressentindo meu lamento. Assoprando meu cabelo. E, carinhosamente, o põe em desalinho lembrando-me que ainda estou aqui. E nessas idas e vindas, no momento de nova pausa para o mundo cartesiano, meu pensamento lança no baralho existencial, uma carta com um naipe de desenho óbvio. Uma poeira ao vento. E uma sentença. Emoção flutuante. O cérebro, outrora passivo, recorre à lei da inércia. Um corpo, assim, permanece até que uma força incida sobre ele. Este corpo sou eu.Imóvel e, apesar de tudo, infelizmente borbulhando, a todo vapor. Tomo consciência de que ninguém pode viver minha vida por mim. A questão é que não tenho outro plano B e não há outra de mim em mim. Meus eus sumiram. Até deles estou só. Eu e o bendito vento. Ocorreu-me ser essa a função do vento, ligar - e não espalhar - os eus solitários. Despertá-los, reacendê-los, juntar-lhes os caquinhos. Venta, vento. E leva de mim, mundo afora, essa dor de amor ao mundo. Queria mesmo não me comover com esse grito de injustiça, tão global e tão particular. Queria deixar-me impávida a essa incoerência da existência humana. Por que, então, sermos nascidos com tantos desejos que chegam a enlouquecer? Desejo de amor ao mundo, de dignidade a cada um; desejo de poder sonhar, desejo de flores, água na pele e sol? Cadê esse lugar sob as asas do rei? Novo vento. Agora, da janela que abre em banda. Em seu rastro, raios de luz morena sobre o quadro de Klimt. O beijo, em minha parede parece responder-me. Figuras retas se confundem com esferas coloridas numa comunhão celestial. O toque dos amantes escorre em flores à beira do precipício, sem temê-lo. O mundo está ali. Os antagonismos em busca da infinitude. Fusão de tudo. Cores, dores, amores... Isso, o delicioso Machado já dizia. É, poeta, a melhor definição de amor não vale mesmo um beijo. E o beijo do vento de agora me alcança e se faz em mim. E continua a desalinhar meus cabelos, minhas inspirações e expirações. Não, não estou só. Tenho o vento. Venta, vento. E me abra a janela inteira da alma. Leva-me ao sol. Dê-me asas mais verdadeiras que as de Ícaro. Quero voar. Quero voar...

Nenhum comentário:

Postar um comentário